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Há novos blocos de rega prontos a cultivar e água com fartura, mas a maioria dos agricultores alentejanos não dispõe de capacidade financeira nem de conhecimento técnico para transformar as terras de sequeiro em regadio. O ministro da Agricultura queixa-se do ensino, as escolas devolvem as críticas. Por Carlos Dias


Durante anos, pensou-se que o mais difícil no projecto Alqueva era fazer a obra. Feita a barragem, a dúvida passou a ser se alguma vez se encheria a albufeira. Atingido esse marco, a questão passou a ser: "E agora?" E agora, deveria vir o mais fácil, isto é, aproveitar os recursos e concretizar tudo o que se prometia, na agricultura, na energia e no turismo. Porém, o que parecia à mão de semear parece, afinal, mais difícil de vingar. O aproveitamento hídrico de Alqueva está longe de servir a agricultura como se pensava que aconteceria. Porque, enquanto a barragem foi enchendo, o país se esqueceu de preparar os recursos humanos para o abandono da agricultura de sequeiro e a mudança para a de regadio.

Alqueva deveria trazer uma nova forma de trabalhar a terra. O Governo admite que, não havendo em Portugal quem o faça, será necessário recorrer aos vizinhos espanhóis. Era previsível?

O ano 2000 dava os primeiros passos. A construção da Barragem de Alqueva decorria sem percalços dignos de registo. Milhares de pessoas vindas de automóvel e de autocarro deslocavam-se em romaria ao local das obras, sobretudo aos fins-de-semana, para confirmar como um mito se transformava em realidade.

O entusiasmo na comunidade alentejana era tanto que a Empresa de Desenvolvimento e Infra-Estruturas de Alqueva (EDIA) entendeu ser tempo de descer do céu à terra e despir o projecto dos seus contornos messiânicos. E no dia 3 de Fevereiro de 2000 apresentou a um conjunto de técnicos e especialistas na vila alentejana de Portel, os resultados de um estudo que mandara elaborar sobre a compatibilidade do ensino na região e o mercado de emprego nos empreendimentos directa e indirectamente ligados a Alqueva. O regresso à realidade não podia ser mais perturbador. O que até então era dito em surdina passou a ser assumido às claras: o Alentejo, por si só, não tinha condições para gerir o projecto de fins múltiplos. Nem os agricultores estavam tecnologicamente qualificados, nem as universidades alentejanas incentivavam formação em culturas regadas.

Tijolo no Algarve

O diagnóstico vai mais fundo nas questões estruturais e destaca os sinais "de uma região com pouca capacidade de iniciativa" marcada pelo analfabetismo e um crescimento demográfico negativo.

A alternativa que o estudo propunha apontava para a necessidade de capitais externos, já que um dos principais estrangulamentos regionais era, precisamente, a reduzida dimensão da estrutura empresarial e a sua deficiente capacidade de iniciativa, encarada como constrangimento estrutural. Um exemplo: os cerca de 100 milhões que a EDIA desembolsou pela expropriação de terras para a instalação do empreendimento "não foram reutilizados na região". Boa parte deste dinheiro foi aplicado "em tijolo no Algarve" revelou, em 2000, Adérito Serrão, então administrador daquela empresa.

Uma década passou e quando a albufeira de Alqueva atinge, pela primeira vez, o enchimento pleno, volta a ser questionada a capacidade da região para potenciar o projecto que envolve um investimento previsto de 2363 milhões de euros, dos quais já se executaram, até ao final de 2008, cerca de 1431 milhões de euros.

No Estudo dos Impactes Previsíveis do Projecto de Fins Múltiplos do Alqueva na Configuração dos Recursos Humanos do Alentejo, também divulgado pela EDIA, em Maio de 2009, as conclusões parecem tiradas a papel químico do documento publicado em 2000. Persiste um "forte peso" dos trabalhadores agrícolas idosos, e com "baixas" qualificações escolares e técnicas. Outros constangimentos: "escassez de recursos humanos", a "continuidade" da actividade produtiva agrícola "concentrada num reduzido número de culturas" de sequeiro, que se desenvolve em terrenos com pouca água e com culturas específicas.

Aponta-se ainda a "debilidade" do sistema de comercialização regional e a "fraca" competitividade do tecido empresarial agrícola, em contraste com a "forte presença de capital estrangeiro", que pode levar a que "grande parte do valor acrescentado e dos efeitos multiplicadores das actividades seja apropriada fora da região". Persiste ainda o êxodo populacional para outras regiões, nomeadamente Lisboa e Algarve, "em especial dos mais jovens que efectuaram formação e que possuem uma qualificação média".

Ministro critica ensino

O ministro da Agricultura, António Serrano, não contorna esta realidade e numa recente visita a Beja reconheceu que "falta investigação" nas instituições de ensino da região, admitindo que estas não estão preparadas para ajudar a desenvolver as potencialidades oferecidas pelo regadio de Alqueva. O governante considera não ser necessário trazer da vizinha Espanha o conhecimento necessário para produzir novas culturas em Alqueva, mas não descarta essa possibilidade, se não vir outra alternativa.

E, procurando deixar claro até onde vai o seu propósito de inverter o actual estado de coisas, António Serrano anunciou que o Centro Operativo de Tecnologia e Regadio (COTR), criado em 1999 para formar e apoiar os agricultores na gestão dos novos sistemas de rega, e que estava prestes a entrar em falência por escassez de meios e de trabalho, vai ficar sob gestão da EDIA.

Isaurindo de Oliveira, que foi director técnico do COTR até muito recentemente, reage à decisão do ministro da Agricultura com cepticismo. "Ainda vamos estar muitos anos na mesma situação", sentencia. A situação do centro operativo "não se resolve por decreto, mas com ideias", prossegue, referindo que no panorama actual das práticas de regadio "não existem pessoas com formação". Daí que entregar a agricultores sem formação o regadio de Alqueva "é a mesma coisa que dar um Ferrari a quem anda de burro", compara Isaurindo de Oliveira, sublinhando que levar a informação e, sobretudo, mudar práticas "leva muito tempo". Quem fez sequeiro não está preparado para, "de repente, fazer regadio", apesar de no Alentejo já estarem instalados há décadas 120 mil hectares de regadio a que se vão juntar mais 110 mil proporcionados por Alqueva. Ora esta imensa área para regar obriga a "consumos brutais de energia", já que o sistema fornece água bombeada sob pressão.

É precisamente o factor custo final da água, para além da falta de conhecimentos, que está a deixar relutantes os agricultores, receosos com os encargos incomportáveis com o consumo da água.

O Ministério da Agricultura garantiu ao PÚBLICO que ainda este mês será anunciado o valor do metro cúbico de água vinda de Alqueva. Vai ter um custo concorrencial (político) em relação ao que é pago pelos agricultores espanhóis da Estremadura e Andaluzia, um dos instrumentos que o ministro apresenta para viabilizar a componente agrícola do empreendimento.

Escolas devolvem críticas

A apreciação negativa que o ministro da Agricultura faz do papel das instituições de ensino na formação de quadros técnicos para o regadio merece reparos de Vito Carioca, presidente do Instituto Politécnico de Beja. "As afirmações do ministro não são as mais contextualizadas", diz, imputando ao Governo "a falta de uma estratégia, de um projecto determinado, consistente". Alqueva implica uma estrutura e um investimento na investigação e na formação que "o poder central não fez", conclui Vito Carioca.

Carlos Mattamouros Resende, ex-presidente do Instituto de Desenvolvimento Rural e Hidráulica, organismo entretanto extinto, critica a tutela por não ter "acautelado a formação e preparação" dos agricultores.

Este especialista criou um centro de competências, para desenvolver campos experimentais nas explorações e, desta forma, definir as culturas mais competitivas e economicamente viáveis e com boa colocação no mercado.

Em 2003, o Ministério da Agricultura definiu um novo modelo agrícola para a zona de intervenção de Alqueva, que previa o cultivo de 44 produtos agrícolas e, destes, apenas seis - grão-de-bico, amêndoa, citrinos, uva de mesa, olival e sementes forrageiras - eram considerados estratégicos. Foi ainda seleccionado um conjunto de produtos especiais como a carne de bovino, leite de cabra e ovelha, vinho, tomate seco e ameixa.

Por agora, prosseguem os ensaios com culturas para a produção de biocombustíveis: milho, colza, soja e girassol. Confrontado com as críticas à indefinição que paira sobre a componente agrícola de Alqueva, o Ministério da Agricultura garante que o projecto vai ser sujeito a uma "reponderação" que passa pela elaboração de um novo estudo que será "oportunamente divulgado".

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