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Marta F. Reis, Publicado em 07 de Janeiro de 2010  |  Actualizado há 5 horas

Director do Serviço de Ciência da Gulbenkian afirma que o sistema universitário tem que mudar:" 14 universidades é incomportável"

 
 

Galileu disse que a luneta dava para ver os navios ao longe e o senado italiano duplicou-lhe o cachet e ofereceu-lhe um cargo vitalício. Não aceitou porque queria ir mais longe. Há exactamente 400 anos registava as primeiras observações de Júpiter, o primeiro produto da ciência moderna. Para João Caraça, director do Serviço de Ciência da Fundação Calouste Gulbenkian, a mensagem é actual: é preciso investir nas ideias dos jovens, e na ciência de longo prazo. E motivar o país para a inovação.



O que mudou nestes 400 anos?

Na ciência entendida como a procura das leis da natureza não há nenhuma mudança. Mas a ciência hoje é um contínuo entre dois extremos: o que é a ciência moderna desde os tempos de Galileu e um outro pólo, que é a procura de novas tecnologias de base científica.



E que hoje é o pólo dominante?

Está a puxar praticamente a ciência toda. Que seria de nós hoje se não houvesse computadores nem redes? Temos 6700 milhões de habitantes, seriamos reduzidos a metade, que era aquilo que as tecnologias de 1950 suportavam como população do mundo.



Mas é uma tendência com consequências negativas?

É tão boa ciência como a outra. O problema é que toda a actividade científica começa a ser guiada pelos imperativos de curto prazo, e a ciência não é só resolver problemas mas descobrir grandes regularidades, propor novas concepções do mundo.



Podem estar a escapar novas oportunidades?

Isso nunca saberemos. Mas olhando para a história do conhecimento vemos que as ideias fora da norma são as que têm mais potencial no futuro. É preciso que estas ideias não fiquem escondidas na cabeça das pessoas, e a melhor altura para se fazer isso é quando se é jovem. Um jovem obcecado com um problema pode, sem receio de ir contra toda a sua maneira de pensar e contra o está estabelecido, propor um novo princípio.



São dadas boas oportunidades aos jovens cientistas?

Estes jovens não têm de ser trabalhadores com contrato, isso é mais tarde. O que precisam é de uma grande liberdade para pensar, e de orientadores com capacidade para os deixar trabalhar até encontrarem soluções. Quando Galileu olhou para os satélites de Júpiter, que utilidade é que isso tinha? Inicialmente propôs a luneta para olhar para os navios ao longe e o senado italiano até lhe duplicou o salário e ofereceu-lhe um cargo vitalício, mas ele não quis.



O financiamento dessa ciência mais abstracta é um problema?

Temos de ter meios para suportar a actividade destas pessoas - todas são úteis, umas sabemos quando e outras não. Para as que sabemos que são úteis estamos mais dispostos a canalizar recursos. Uma grande actividade que se tornou industrial como ciência precisa de ser financiada, gerida, avaliada, como qualquer actividade dos serviços. Tratar a ciência desta maneira faz com que a ciência perca um pouco da sua criatividade e espontaneidade. O problema é introduzir neste mecanismo uma parcela que permita que a faísca continue a chispar. Há pessoas que dizem que se devia guardar 10% dos fundos para investigar de uma maneira não comprometida com objectivos e 90% com objectivos.



E há condições para isso?

Neste momento em Portugal o financiamento público é metade do financiamento total. Já é muito bom, não está invertido. Mas devíamos ter mais fontes de financiamento. Nos EUA há a National Science Foundation - cá temos a Fundação para a Ciência e Tecnologia. Mas quando nos EUA é criada a NSF são também criadas agências nacionais para tratar de problemas de investigação em áreas interdisciplinares - na energia, no espaço, na saúde. Nós aqui não podemos só com uma agência para a investigação académica resolver o problema da tecnociência.



O sistema universitário português tem de mudar?

Temos de perceber que as universidades não são todas iguais, e não podem ser. Há universidades que podem estar viradas para um excelente ensino, nem todas podem ter grandes laboratórios de investigação. Seria preciso desagregar algumas universidades e reconstituir algumas. Levaria a que, por exemplo, Portugal tivesse uma universidade tão atractiva e competitiva como as melhores universidades do mundo. Não vamos poder ter as 14, é incomportável. Essa discussão não foi feita e devia ter sido.



Passa pela revisão da Lei da Autonomia das Universidades?

A Lei da Autonomia das Universidades não dá autonomia. Para haver autonomia era preciso um dote de capital. Nos Estados Unidos as universidades de investigação não dependem de nenhum ministério. Na Europa isso é impossível: temos um sistema de vida política baseado na condução dos negócios públicos pelo Estado. Não haverá nenhum ministro que não sinta às vezes a vertigem de intervir numa universidade.



Com consequências?

É o que temos na Europa. Temos de constituir um modelo de universidade que permita a sua diferenciação.



É uma questão em debate?

Não se discute a fundo porque a situação política não permite uma grande reorganização administrativa. Nós não sabemos bem o caminho da União Europeia. Apesar de tudo aquilo que foi conseguido, neste momento a Europa está mais desagregada do que já esteve. Seria preciso um enorme consenso.



Há razões para se estar optimista com a evolução da ciência em Portugal?

Os fundos estruturais permitiram que hordas de jovens não só se dedicassem à investigação como percebessem que isso é fascinante. Agora estes jovens precisam de emprego, de carreiras, científicas ou não. Esse é o problema de um país como o nosso, onde houve uma formação muito acelerada e boa, que nos deu um certo amor-próprio.



As políticas do governo vão nesse sentido?

Têm sofrido sistematicamente de uma dificuldade: pôr o sector privado em ligação com o sector público. É aqui que vejo o maior problema nacional. Os ministros podem falar muito bem uns com os outros mas não vemos os serviços e os ministérios articularem-se e não temos um conjunto de entidades públicas ou privadas a aparecer no sistema com objectivos comuns. Olhamos para o país e vemos que as estruturas que existem estão cheias. Se queremos atingir o dobro do número de investigadores portugueses, não podemos ter o mesmo número de instituições. Isto não é como num balão, soprar... É preciso crescer de forma diversificada.



A estratégia nacional tem sido a adequada?

Tivemos um plano tecnológico, mas precisávamos de um plano nacional para a inovação, que já devíamos ter há dez anos. Durante esta década alguns países gastaram mais de 3% do PIB em I&D. O 25 de Abril preocupou-se com a democracia: dar condições para a livre concorrência. Não houve muito tempo nem muito espaço para discutir estas questões, porque isto era contra a cultura das elites que dirigiam o país. Cabe agora um grande esforço para as pôr de novo na agenda e fazer com que o país dê um salto. Não podemos estar contentes com este estado de coisas. É preciso pensar que todo o mundo está a caminhar neste sentido. Uns já partiram em pole position, outros partiram atrás, mas têm uma passada brutal.



Portugal deve apontar para a

vanguarda?

Eu acho que o querer ser primeiro não dá, é uma coisa efémera. O bom é estar na liga dos primeiros, garante-se uma visibilidade muito grande. Agora temos de nos especializar em algumas áreas, como noutras alturas do passado.



O novo centro de nanotecnologias é um bom exemplo?

Não chega. Temos de ter toda a cadeia, da educação à investigação e ao negócio, à indústria e aos serviços. Não basta ter uns institutos - são peças de um lego que é preciso ligar, porque senão podem ser ligadas a outros sítios e perdemos a capacidade de as coordenar.



Que leitura faz do país neste momento?

Não vemos emergir os políticos que vão ser os grandes responsáveis pela condução do país entre 2020 e 2040, e temos de os ver. Precisamos de mais debate político sobre as grandes questões. O presente é um palco de conflitos, e nós estamos de um lado: vemos sempre algo que contraria a vontade de mudar e de criar novas oportunidades. Temos de lutar contra isso sistematicamente.

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