Aos nossos « Amis, bien que collègues »,
como já se diz no mundo francófono, e não quereríamos traduzir
numa universidade de competição feroz e injusta.
Este estudo não se baseia em bibliografia adequada, nem se apoia em estatísticas, nem estudos de campo, validados e verificados. Não é educativamente correcto e, como facilmente se verá, nem sequer é escrito em « eduquês ». É outrossim, e apenas, fruto em escrita apressada (as avaliações de centenas e centenas de estudantes em curso, em todos os ciclos, não dão tempo para mais - mesmo já quase não se dormindo e já se tendo prescindido há muito de viver) de observação participante durante já bastantes anos de experiência em dedicação nem sempre legalmente « exclusiva », mas na verdade total, vivencial, à Universidade. Escrita apressada, mas ideias de há muito amadurecendo e tornando-se-nos muito perigosamente claras. Claríssimas.
A sua única vantagem será esta : falar livremente, coisa que pode vir a não ser possível a breve trecho para muitos, por medo das novas avaliações (porque avaliações sempre as houve), que apressadamente e sem tempo para ouvir os interessados (nem para eles ponderarem) se estão a preparar. Sinal então de que não temos medo ? Não. Sinal de que o temos, sem dúvida, mas convicto de que, no nosso caso, continua a não valer a pena fingir... Não somos capaz. Porque a Universidade se nos tornou segunda natureza... e não poderíamos mentir, calar, nem afivelar uma máscara para salvar um emprego (ou uma nota), sacrificando a dignidade. Porque, segundo uma velha tradição, um doutor é uma testemunha da verdade... Do que ele pensa ser a verdade. E disso deve dar testemunho.
Temos dito, e repetimos. Nisto de critérios de avaliação, todos, de todo o tipo, e sobretudo na Universidade, o problema é, antes de mais : quem guarda os guardas ? Como podem colegas julgar colegas, com imparcialidade ? E como podem os estudantes, que são inegavelmente parte interessada (e por vezes magoada, a clamar vingança por se crerem injustiçados, ou, pelo contrário, com simpatia por terem sido bafejados pela « sorte »), julgar com conhecimento, competência e imparcialidade ? Para mais, muitas vezes, utilizando inquéritos complexos, nem sempre objectivos, e a que podem responder tanto assíduos como faltosos, quer com aproveitamento quer sem ele, etc., etc.
Pode pensar-se que a solução para a obtenção da objectividade está em que os avaliadores sejam muito estritamente vinculados por normas rígidas e minuciosas. Nunca pior erro. Quanto mais complexa e pormenorizados forem os critérios, mais possibilidades de fuga e de manipulação. Sobretudo se se tratar de critérios que exigem aos docentes mais habilidades, ditas « competências »... na verdade, distraindo-os das suas evidentes e elementares funções - ensinar e investigar. Sempre um docente que desagrade pessoalmente ao avaliador terá um currículo com um (naturalmente vários) calcanhares de Aquiles, que servirão para, agigantados, se dizer que ele nada vale. Sempre um docente que se quer beneficiar terá esta ou aquela virtude para, agigantada também, se dizer que é um génio...
Ao definirem grelhas de critérios, as entidades por tal responsáveis têm, normalmente, duas tendências contrárias : ou se enquistam num modelo ideal muito concreto de professor / investigador, normalmente decalcado num tipo de carreira concreto, de uma área concreta (não se imagina os preconceitos que há em cada área !) ; ou então procuram uma abrangência enorme, procurando fazer caber nos critérios tudo o que os professores /investigadores, de todas as áreas de que tenham conhecimento podem fazer.
Em ambos os casos, os critérios resultantes são empobrecidos e podem resultar em muito grandes injustiças, mesmo arbitrariedades.
Evidentemente que avaliar um músico por patentes, um economista por exposições, um escultor por concertos, ou coisas menos evidentemente descabidas, mas quase (por exemplo : a mania do apoio à comunidade ou dos serviços é muito frequente - mas há áreas em que a comunidade confia nos serviços universitários e outras em que prefere os serviços públicos ou privados não universitários), é muito errado e produz necessariamente prémio para actividades marginais e castigo para quem trabalha na sua área, no mainstream da sua área.
Já se sabe que nem todos podem ter patentes, nem todos podem ter apoio ou serviços à comunidade, nem todos, mesmo, devem ter trabalho de gestão, e não está provado que todos devam ser obrigados a fazer programas televisivos, ou a elaborar manuais, ou sequer que devam ter popularidade junto dos estudantes. Este último ponto é relevante, e perigosa a condescendência, por receio que se presuma logo impopularidade, melhor, anti-pedagogia. Mas a verdade é que nos inquéritos pedagógicos os interessandos docentes deveriam ter participação, e tudo deveria ser muito bem ponderado. Há inquéritos que requerem coisas objectivas, que passam a ser avaliadas subjectivamente (como quando se pergunta pela assiduidade dos docentes), e outros inquéritos que valorizam (presume-se) factores psicológicos do docente que podem até desagradar aos discentes (como quando se pergunta se os docentes dão as aulas « com entusiasmo » : saltam e riem de contentamento na pista, perdão, no « estrado » ?). É um poder excessivo dar a apenas alguns a elaboração desses inquéritos, e mesmo transferir isso para « especialistas » é muito perigoso, porque todos, todos mesmo, transportam consigo os conceitos e preconceitos da sua própria área, o que não deixa de ocorrer com os « especialistas » em causa.
Mas nem só é errado avaliar com base em preconceitos sobre o que deveriam todos fazer. O erro simétrico é não privilegiar um grupo de competências e actividades mais próprio de uma área - normalmente as privilegiadas são as científicas puras e duras, ou as de consequências económicas e tecnológicas, com claro prejuízo das ciências sociais não económicas, das letras e do direito e afins, só contando muitas vezes nas artes (plásticas, dramáticas, musicais) o que tem visibilidade pública e económica. Assim, o erro será então colocar tudo, todos os itens que ocorrerem - obrigando os docentes / investigadores a uma dispersão de actividades que fará que só muito raros espíritos de grande flexibilidade (e sorte) possam ter cotação em todos os itens, ou mesmo numa boa parte deles. O que tornará a avaliação infernal se for anual...
Avaliar professores / investigadores é pior que pesar oiro. Muito mais delicado. E não se tem balança de Minerva que o faça. O risco é o nariz do colega desagradar e, com base numa muito complexa tabela, sempre encontrar forma de o penalizar, privilegiando o amigo. Pensada lei, pensada malícia - já diziam os antigos. Pensamos que, quanto mais complexa for a grelha, mais fácil será subverter o valor e a qualidade real e julgar pro domo.
Deve partir-se de um princípio garantístico de desconfiança ante a avaliação. Devem criar-se mecanismos de recurso da mesma, para entidades o mais distantes possível dos avaliadores. Devem criar-se formas de assegurar que a avaliação seja feita por pessoas competentes e da área específica dos avaliados, e com posição hierárquica superior, além de insuspeitos de favoritismo, relativamente a qualquer dos competidores. Porque de competição se trata. E feroz.
Na sua primeira avaliação, pelo menos, cada docente deveria poder apresentar, se quisesse, um texto sem limite de páginas, em que expusesse o seu perfil, em que comentásse a sua própria carreira, em que justificasse a classificação a que se julgasse com direito. E esse texto, com o currículo, serviria de uma avaliação contraditória pública, caso não houvesse coincidência entre a nota esperada e a atribuída.
Cremos, quanto ao estabelecimento de uma tabela ou grelha em concreto que ela teria que ser estabelecida para cada sub-área do conhecimento (não bastará certamente a área em geral, mas, tendencialmente ao menos, por disciplinas... Um juslaboralista não pode certamente julgar bem um especialista em direito marítimo ; provavelmente um especialista em marketing não julgará de forma conveniente um contabilista ; um helenista não poderá ser juiz de um germanista ; um medievalista não poderá pesar bem o trabalho de um arquéologo da pré-história, um fitólogo não será capaz de avaliar bem um entomologista, um cardiologista um psiquiatra, etc.).
Por outro lado, é perigoso fiarmo-nos no critério da publicação em revistas. Por muito que custe ao educativamente correcto, pelo menos em áreas em que as bibliografias falam muito eloquentemente da orientação metodológica e até ideológica, como as de letras, humanidades, o direito, etc., mesmo com blind referees pode haver escolhas e recusas por afinidades mais ou menos electivas que não são científicas. É absolutamente humano. Mais ainda : há escolhas com preconceitos por áreas culturais, e que poderão até prejudicar muito a investigação. Se só contam revistas de ambiente anglófono, que poderão fazer, por exemplo, a filosofia continental, as culturas e literaturas não anglófonas, e os direitos nacionais ? Os juristas não podem escrever em inglês e publicar em revistas estrangeiras artigos sobre direito português. Ninguém quer saber disso, e contudo parece que tal tem interesse para o País, ou não terá?
Do mesmo modo, os convites para júris dependem de ser estar ou não « no circuito ». Ou o rol das citações que alguém tenha da sua obra por outros colegas. Não se pode avaliar excessivamente coisas que dependem não tanto da qualidade intrínseca, mas da popularidade (inquéritos dos alunos) ou da rede de contactos e simpatias (júris, publicações em revistas, citações). E não se deve contabilizar excessivamente o que depende de vocação não docente ou de investigação, como é a gestão académica em todas as suas vertentes. A não ser que o docente tenha optado por ser sobretudo gestor.
O critério do número de teses, por exemplo, é outro artificial e altamente falível. Há escolas em que há poucas teses, e há outras em que são multidão. Há mesmo casas que recusam teses e outras que não. Há critérios de qualidade que levam docentes a recusarem orientações, e poderá haver demagogia na aceitação de tudo o que vier á rede, e pior : pode haver (e diz-se que já vai havendo) formas de alguns se insinuarem e posicionarem como grandes monopolistas ou oligopolistas das teses. Em certos casos, orientar teses em demasia (pensamos - nas áreas que conhecemos - que mais que 6 ou 7 por ano é desastroso para a necessária assistência : o dia tem 24 horas, e tem que se fazer muito mais coisas além dessas orientações) pode ser sinal negativo, e não positivo. Cremos que se poderia encontrar um limite mínimo (umas duas teses por ano parece razoável), mas não bonificar ninguém para além da meia dúzia de teses por ano. Será que se pretende realmente qualidade ou apenas um critério de industrialização?
Cremos, assim, que a melhor solução seria que cada docente / investigador definisse previamente o seu próprio perfil, dentro de uma meia dúzia de tipos (professor-pedagogo, professor-investigador, professor-gestor, professor-de interface com a cimunidade, com tipos mistos também), sendo que qualquer dos tipos em causa poderia ter o máximo da avaliação, com critérios diferentes.
Assim, não se iria penalizar um professor pedagogo por ter pouca investigação. Definido um mínimo (porque todos têm que investigar), o que se avaliaria, isso sim, seria a sua capacidade de dar boas aulas e de fazer boa divulgação... Já o professor gestor não seria incomodado por ser menos pedagogo, ou por não fazer tanta investigação. Teria também que ter mínimos (senão seria só gestor). Mas o que interessaria seria a avaliação do seu desempenho (aí sim, por inquérito secreto a docentes, funcionários e estudantes, combinado, quando fosse o caso, com informação do seu superior hierárquico).
No caso do professor investigador o que mais contaria seria a publicação de livros, ou registo de patentes, ou outra forma adequada à sua área. Com o maior cuidado para não se beneficiar um bafejado pela sorte política ou por ter um círculo alargado de relações. Os editores não costumam querer perder dinheiro - esse costuma ser um bom critério (até de impacto, pela aquisição dos livros ; reedições seriam bom sinal). Não contariam, pois, as edições de autor, salvo casos excepcionais.
Há sempre casos excepcionais. A avaliação deveria ser feita com tempo (o ideal seria fosse feita de três em três anos - ou mais: num ano vê-se pouco o fruto do trabalho de longo curso do ensino, da investigação e até da gestão e do apoio à comunidade), com base num muito breve relatório de cada um para tal efeito, e à nota dada poderia haver réplica - como aflorámos já. E, evidentemente, o ónus de não dar nota máxima seria dos avaliadores, que a cada um deveriam apontar as deficiências curriculares, as quais poderiam ser rebatidas na réplica, a apreciar por um órgão de recurso. Avaliação deve ser (não é isso que se diz para a avaliação dos estudantes ?) pedagógica e não contribuir para frustrar os avaliados, mas para os incentivar. De há muito que reivindicamos ao menos os mesmos direitos dos estudantes.
Sobretudo não seria permitido que se objectassem minudências. A avaliação tem como suporte tópicos, mas é sobre uma pessoa, normalmente uma pessoa que sacrifica a sua vida à Universidade, e que não pode estar dependente do capricho do avaliador. O qual, no limite, pode ser até um concorrente seu... e julgar, afinal, em causa própria.
Se num ano o professor não publicou nada, tem de ser ver o seu historial. Pode ser que esteja a preparar obra que não leve apenas um ano a realizar. Se há dez anos que não regista uma patente, será que se tem de entender que é uma nulidade ? Haverá sempre inspiração para um músico criar novas peças todos os anos ? E um professor de desporto, com mais idade, terá de bater os records olímpicos à beira da reforma ? Há factores imensos a ter em consideração. Não se vai pedir a um recém-admitido o mesmo que se pede a alguém no auge da carreira (e esse auge é diverso para as várias pessoas)... Devem, assim, estabelecer-se factores de correcção plurianual e de compensação entre critérios. Com o maior cuidado.
Quem decobrir a cura para a SIDA ou o câncer está desculpado de ter mau génio e de os alunos não gostarem dele ou dela. Quem escrever o romance do século pode nunca ter pertencido a nenhum órgão de gestão. Quem gere uma Faculdade com superavit (mas sem avareza) pode não escrever senão um artigo de dois em dois anos, ou expor um quadro de três em três. Quem é adorado pelos alunos como grande comunicador pode não descobrir a pólvora de novo.
Haja avaliadores com bom senso, e capacidade para aplicar critérios muito vastos. Quanto mais critérios se impuserem, mais avaliadores virão desculpar-se dizendo que tinham as mãos atadas e deram as notas que não queriam. E mais professores injustiçados virão dizer que foram preteridos pelo colega ao lado, por causa dos seus lindos olhos...
Avaliar é muito importante, porque seria uma forma de introduzir mais justiça na Universidade. Mas só se for mesmo para introduzir justiça. E, como dizia Santo Agostinho, só é possível haver justiça com pessoas justas. Tememos que a nossa sociedade e a nossa Universidade, cada vez mais egoístas e competitivas, cada vez mais amorais, não tenham ainda aprendido o necessário distanciamento e imparcialidade.