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Público, 27.01.2011
Ricardo Garcia
Quando pensa no debate sobre as alterações climáticas, o que é que mais o irrita? Por mais estranho que pareça, esta foi uma das perguntas destinadas a aproximar, numa reunião hoje em Lisboa, quem acredita e não acredita na tese de que o aquecimento global existe e é culpa do ser humano.
À volta da mesa, estavam climatologistas de renome, jornalistas internacionais, “cépticos” das alterações climáticas, outros especialistas. “Reconciliação” é a palavra-chave do encontro – iniciativa do Centro de Investigação Comum da Comissão Europeia e da Fundação Calouste Gulbenkian, e que termina amanhã com uma conferência pública.
Em causa não está discutir se a teoria climática está certa ou errada. Mas sim tentar encontrar um caminho para lidar com uma realidade complexa, onde se cruzam ciência, valores e expectativas. O objectivo é saber “como é que nós podemos iniciar um novo tipo de conversa”, afirma Ângela Pereira, especialista do Centro de Investigação Comum e uma das organizadoras do encontro. Hoje, diz Ângela Pereira, “há vozes que são ouvidas e vozes que não são ouvidas”.
O canadiano Steve McIntyre, notabilizado pelas suas críticas à forma como os cientistas construíram um gráfico que permite concluir que o aquecimento actual não tem precedentes nos últimos mil anos, não se queixa propriamente de não ser ouvido. O seu blog Climate Audit teve, no ano passado, seis milhões de visitas.
McIntyre, um matemático que esteve ligado a empresas de mineração e um dos participantes da reunião em Lisboa, é uma das personagens centrais do caso conhecido como climategate, envolvendo a divulgação de emails pirateados da universidade britânica de East Anglia. Vários desses emails sugerem que alguns cientistas evitaram franquear a McIntyre os dados de base dos seus estudos. “Se os cientistas climáticos estão preocupados com o futuro, deviam remover as desculpas para evitar que os seus opositores se lhe oponham”, disse McIntyre ao PÚBLICO.
Alguns dos cientistas envolvidos no caso climategate foram convidados para o encontro de Lisboa, mas não quiseram vir, deixando McIntyre pouco confiante no sucesso da reunião. “Sem ‘o outro lado’, vai ser difícil. Talvez apareçam da próxima vez”, disse.
Ângela Pereira afirma que não foi fácil trazer a Lisboa representantes das posições que qualifica como “alarmistas”. “Tivemos imensa dificuldade”, reitera. Do lado dos “cépticos”, alguns dos mais activos também não quiseram participar ou cancelaram a vinda à última hora. “Há pessoas que não estão interessadas em dialogar”, conclui Ângela Pereira.
Presente em Lisboa, o cientista Hans von Storch, do Centro de Investigação GKSS, na Alemanha, representa uma visão moderada. Crítico de algum alarmismo entre os cientistas climáticos, von Storch afirma que nem tudo o que os cépticos dizem é desprovido de sentido. “Os cépticos podem não conhecer todos os factos e argumentos científicos. Mas certamente não são estúpidos”, disse ao PÚBLICO.
“O primeiro ponto é saber quem são ‘os outros’. É isto o que estamos a tentar fazer aqui”, completa. “Se soubermos o que os preocupa, já será útil”.
É para aí que aponta uma das preguntas lançadas no encontro: o que é que mais o irrita? Algumas respostas: o facto de as alterações climáticas ocuparem um lugar tão central na actualidade; a ausência de auto-crítica na ciência; a ideologia entre os “negacionistas”. Outra questão procurou identificar o que é mais crítico na discussão sobre alterações climáticas. Um dos aspectos citados: o estudo da variabilidade natural do clima.
O encontro de Lisboa – do qual sairá um documento a enviar à Comissão Europeia – difere de outros mais usuais. Reuniões científicas sobre alterações climáticas são abundantes. Os cépticos, a maior parte sem ligação ao mundo formal da ciência, também reúnem-se, uma vez por ano, numa grande conferência internacional. Uma tentativa de “reconciliação”, como a que agora se realiza, é, entretanto, um evento raro.
Vários dos maiores cientistas climáticos, incluindo alguns envolvidos no climategate, estiveram recentemente noutro encontro em Lisboa, para debater o estado da arte dos estudos sobre o clima no passado. Agora foi a vez de alguns líderes do movimento que contesta estes cientistas. Mesmo que por acaso, Portugal parece estar-se a transformar num ponto focal do debate climático.