A maior cultura de milho do planeta foi devastada pela seca mais severa nos Estados Unidos dos últimos 56 anos e teme-se que esta seca histórica dê origem a uma crise alimentar como a de 2008, que gerou motins e instabilidade política em vários pontos do mundo.
Os números revelados na sexta-feira pelo Departamento de Agricultura dos EUA revelam que pelo menos 17% da colheita de milho está perdida. Será a mais pequena dos últimos 17 anos, sublinha o New York Times, quando as condições meteorológicas favoráveis da Primavera tinham levado os agricultores a plantar tanto milho como nunca desde 1937 - ao todo, 39 milhões de hectares, diz a Time. Mas agora 16 milhões de hectares de terra plantados com pés de milho ressequidos e subdesenvolvidos estão nas zonas classificadas como estando em seca extrema ou excepcional, segundo o Centro Nacional de Mitigação da Seca.
Cerca de 65% do território dos EUA está pelo menos em situação de seca moderada, uma área quase tão vasta como o fenómeno Dust Bowl da década de 1930, quando anos consecutivos de seca fizeram com que o solo das Grandes Planícies norte-americanas se transformasse em pó, soprado pelo vento em enormes tempestades de poeira.
No Midwest americano, a zona mais afectada pela seca, foi plantado no ano passado 35% do milho e da soja produzidos em todo o mundo, segundo números citados pelo Financial Times. Como os EUA são os principais exportadores de milho e soja do mundo, e a seca afecta a região do Midwest, teme-se que a inflação dos preços dos cereais, que já se sente, dê origem a uma nova crise alimentar, como de 2008, que provocou motins e instabilidade política em vários pontos do mundo.
"A situação actual é precária e pode deteriorar-se mais se persistirem as condições meteorológicas desfavoráveis, ainda não é uma crise", escreveu no jornal Financial Times o secretário-geral da Organização para a Alimentação e a Agricultura das Nações Unidas (FAO), José Graziano da Silva. "Mas os riscos são altos e se não forem dadas as respostas certas pode criar-se uma nova crise."
Etanol não, obrigado
Esta seca veio de surpresa - começou em Junho, com uma onda de calor que fez com que fossem batidos recordes históricos de temperaturas em muitos locais, que regra geral tinham sido atingidos nos meses mais quentes do ano, Julho e Agosto. Acenderam-se os enormes incêndios florestais no Utah e no Colorado, que chegaram a áreas urbanas. A seca instalou-se, com o seu séquito de problemas. Indiana, Illinois, Nebraska, Kansas, Missouri, Oklahoma e Arkansas são os estados mais afectados, com cerca de 20% da sua área considerada em "seca extrema ou pior".
O milho assa nos campos, queimado ainda antes de se desenvolver a maçaroca. A soja vem um pouco mais tarde, mas as perspectivas são igualmente más. "Isto é mesmo uma crise. Acho que nunca vi nada assim na minha vida", disse o governador do Illinois, Pat Quinn, depois de visitar uma série de quintas onde as culturas ficaram esturricadas pela falta de humidade e pelo calor nos próprios campos, citado pelo New York Times.
O milho é o mais valioso cereal cultivado nos EUA - só no ano passado, representou 76.500 milhões de dólares. É alvo de muitos subsídios e estímulos à produção, como a política de incentivos federais à produção de etanol, incluindo um mandado federal para que este biocombustível polémico seja misturado com a gasolina. Os produtores de gado e aves de capoeira têm pedido que este mandado esteja suspenso, dada a situação de seca, e a FAO pede o mesmo. Outros 20 países, entre os quais a França, a Índia e a China, noticia o Financial Times, já expressaram também a sua preocupação aos EUA com esta exigência, que sonega 40% do milho produzido nos EUA.
Grande parte das maçarocas intensivamente cultivadas na América não são usadas directamente nos nossos pratos. Muitas acabam consumidas de forma irreconhecível, como adoçante, nas bebidas e outros alimentos (14%). O destino de 33% do milho é alimentação dos animais, tanto de capoeira como gado. Mas a fatia mais larga, 40%, vai mesmo é para a produção de etanol, um biocombustível cuja produção é cara e que tem muitos desperdícios.
Cadeia alimentar instável
Em 2010, houve uma segunda crise internacional relacionada com a subida do preço dos alimentos - provocada por fenómenos climáticos extremos, enquanto a de 2008 teve mais a ver com a subida do preço dos combustíveis. Uma seca reduziu a colheita russa de trigo em um quinto, o que levou Moscovo a banir a exportação deste cereal, enquanto na China boa parte das colheitas foi destruída também por uma seca e na Austrália o problema foram cheias. O preço do trigo aumentou mais de 50% e os alimentos derivados disparam 32%, recorda Michael Klare, professor de Estudos de Paz e Segurança Mundial no Hampshire College, nos EUA, no site TomDispatch.com.
"Quando acontece que uma colheita falha com esta magnitude - estima-se que 80% do milho tenha sido afectado de alguma forma e pelo menos 11% da soja -, os efeitos fazem-se sentir ao longo de toda a cadeia alimentar", comenta Isobel Coleman, director da Iniciativa para Sociedade Civil, Mercados e Democracia do think-tank norte-americano Council on Foreign Relations.
"Em todo o mundo há classes médias a crescer, um aumento da procura da carne e de proteínas. Os países estão a tornar-se cada vez mais dependentes de alimentos para os animais relativamente baratos fornecidos pelos Estados Unidos", explica, numa entrevista divulgada no site da think tank. O mundo tem um apetite cada vez mais voraz por uma dieta rica em proteínas animais. Assim, o aumento do preço nos EUA acabará por encarecer mais facilmente a carne num país em desenvolvimento do que nos próprios Estados Unidos.
Nas próximas semanas, o preço da carne, por exemplo, até deve baixar nos EUA, porque muitos criadores levarão os animais para abate, uma vez que não conseguem alimentá-los. "Mas a mais longo prazo, os preços vão aumentar. Os especialistas prevêem subidas de 4 a 5% nos preços no ano que vem", diz Isobel Coleman.
Países que importam muitos dos seus alimentos, como as Filipinas, o Afeganistão, ou o Egipto, vão sentir em cheio os seus efeitos. "E quando vemos preços dos alimentos a subir rapidamente, claro que isso conduz a instabilidade", sublinha Coleman. "Já vimos isso várias vezes nos últimos cinco anos em muitos destes países. A subida do preço dos alimentos traduz-se em protestos nas ruas."
Meio mundo come milho com sotaque do Midwest
Quando barra uma fatia de broa com manteiga ou a usa para comer um portuguesíssimo chouriço, é provável que a farinha de milho usada para a fazer tenha sotaque do Midwest. É que 53% do milho comercializado em 2011 foi plantado por agricultores norte-americanos.
Sendo um dos grandes produtores de cereais, os EUA dominam o mercado internacional do milho, embora exportando uma pequena quantidade da sua produção (15%). Por isso, os preços que prevalecem internacionalmente são os do mercado interno - influenciados pela meteorologia na "Cintura do Milho", o Midwest. Daí os receios de que a grande seca de 2012 resulte num terceiro episódio de aumento dos preços dos alimentos a nível mundial em cinco anos.
Os efeitos já se começam a sentir: o índice de alimentos da Organização para a Alimentação e a Agricultura (FAO) subiu 6% de Junho para Junho. A deterioração das perspectivas quanto à colheita nos EUA fez os preços do milho subirem 23% em Julho.
A isto junta-se a cotação do trigo, o cereal mais consumido no mundo, que subiu 50%. Aqui o que está em causa são as más condições meteorológicas na Rússia e a expectativa de redução nos stocks de milho. O preço do açúcar está também a fazer subir o índice de preços da FAO, devido às chuvas no Brasil, maior exportador mundial. O atraso das monções na Índia, que cria condições de seca, também não ajuda à tranquilidade dos mercados.
Na Bolsa de Chicago, o valor dos futuros do milho (as previsões quanto ao preço que atingirá numa determinada data futura) subiram 60% a partir de meados de Junho, atingindo níveis recorde. Outros cereais, como a soja e o trigo, estão também a subir muito. Oficialmente, mais de metade da colheita de milho é classificada pelo Departamento de Agricultura dos EUA como de má qualidade - a pior classificação desde a seca de 1988, quando a colheita de milho foi reduzida em 31%. C.B.
A culpa é das alterações climáticas ou nem queremos falar disso?
Modelos para compreender a evolução do clima não representam bem os fenómenos extremos
A culpa da seca recorde nos EUA é das alterações climáticas causadas pelo aquecimento global? Normalmente, os cientistas são muito cautelosos a fazer essa ligação entre a meteorologia, mesmo os fenómenos meteorológicos extremos, e o clima, que é a caracterização do planeta no longo prazo. É como comparar uma piscadela de olho com um filme de 120 minutos. Mas, desta vez, há cientistas prontos a ligar as duas coisas.
James Hansen, do Instituto de Estudo Espaciais da NASA em Nova Iorque, não é nenhum estranho à intersecção da política com a ciência das alterações climáticas - há 24 anos, testemunhou sobre o assunto no Congresso. Desta vez, publicou um artigo na revista científica Proceedings of the National Academy of Sciences em que, usando dados estatísticos, produz mapas em que mostra como as temperaturas extremas no Verão se tornaram não só muito mais frequentes como se alargaram a muito mais áreas.
Assim, entre 1951/1980, os períodos de temperaturas extremas só se verificavam em 1% da superfície terrestre. Ao analisar o que se passou e as três décadas seguintes, a equipa de Hansen conclui que, no final desse período, as vagas de calor se tinham alargado a 10% do globo. Conclusão, polémica para alguns cientistas, que acusam Hansen de estar a fazer um libelo político: "Podemos dizer com segurança que as ondas de calor de Moscovo em 2010 ou do Texas em 2011 são consequência das alterações climáticas".
Apesar do interesse político de Hansen - mesmo no meio da maior seca em seis décadas, o tema das alterações climáticas e do que se pode fazer para as limitar tem estado ausente da campanha das presidenciais norte-americanas -, ele não está propriamente a esticar para lá do admissível em ciência. Outros estudos têm apontado neste sentido, e o IPCC - o grupo de peritos que trabalha para elaborar relatórios de consenso sobre as alterações climáticas para a ONU - divulgou um relatório recentemente em que aponta também esse caminho.
A verdade é que os modelos computorizados com que os cientistas tentam compreender como pode o clima evoluir não representam bem os fenómenos extremos, disse à Nature Kevin Trenberth, climatólogo do Centro Nacional de Investigação Atmosférica dos EUA. Mas isso pode levar algumas pessoas a tirar uma conclusão errada: "A de que não sofrem influência humana." Clara Barata