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Público, 04.08.2009, Mário Vieira de Carvalho
Segundo os descritores do Grupo de Amesterdão (síntese do entendimento corrente na Europa), os objectivos de formação dos dois primeiros ciclos do ensino superior são os seguintes.
Primeiro ciclo: a) capacidade de reunir e interpretar dados para informar os juízos e/ou a reflexão sobre temas social, científica e eticamente relevantes; b) capacidade de comunicar informação, ideias, problemas e soluções tanto a especialistas como a leigos.
Segundo ciclo: a) capacidade para formular juízos a partir de informação incompleta ou limitada - incluindo reflexão sobre responsabilidades sociais e éticas relacionadas com aplicação do seu saber e opiniões; b) capacidade de transmitir as suas conclusões, bem como o conhecimento e a base lógica da tese subjacente, tanto a públicos especializados como a não especialistas e de uma forma clara e inequívoca; c) capacidade para integrar o conhecimento e tratar a complexidade.
Basta lermos estes descritores para percebermos um equívoco: a confusão dos objectivos de formação do primeiro e do segundo ciclo de Bolonha respectivamente com as matrizes das nossas antigas licenciaturas e mestrados. Não houve coragem para reformas curriculares de fundo. A comensurabilidade dos nossos graus com os do espaço europeu é apenas formal, e não substancial.
As universidades portuguesas acreditaram que podiam continuar a chamar juristas, economistas, arquitectos, etc., aos portadores de um diploma de primeiro ciclo - o qual, porém, não titula, no espaço europeu, a "capacidade para formular juízos a partir de informação incompleta", a "capacidade de transmitir as suas conclusões de uma forma clara e inequívoca" ou a "capacidade para integrar o conhecimento e tratar a complexidade". Ao acreditarem nesse contra-senso - como se o antigo conceito de licenciatura e o actual fossem uma e a mesma coisa - geraram uma cadeia de efeitos perversos que está a lançá-las na crise: crise de projecto e crise financeira.
Crise de projecto. Por um lado, porque esvaziaram o segundo ciclo da sua função: obcecadas com o velho conceito de licenciatura, desprezaram o "centro de gravidade" ou "nó central" do ensino superior, que passava a ser o mestrado. Por outro lado, porque tornaram o tradicional ensino monodisciplinar ainda mais compacto.
Crise financeira. Desde logo, porque a concentração de recursos docentes num primeiro ciclo demasiado pesado é feita à custa dos mestrados, reduzindo, a este nível, a oferta de vagas e a geração de receitas. Depois, porque a mobilidade de estudantes, por via da interdisciplinaridade, não é aproveitada em benefício de uma maior rentabilização dos recursos disponíveis, mesmo nas especialidades mais raras.
Um primeiro ciclo de banda larga, com abertura pluridisciplinar, não prejudica a formação no domínio científico principal. Antes pelo contrário, reforça-a. Os horizontes cognitivos alargam-se, graças à produtividade intelectual da relacionação: "o real é relacional". As capacidades assim adquiridas, seja nesse grau, seja no segundo ciclo, têm um valor acrescentado. Inscrevem-se num perfil individual de formação (a um tempo especializado e interdisciplinar), segundo as opções e motivações de cada um. Cruzam saberes - condição de inovação e factor de empregabilidade.
O ensino superior europeu (tal como, aliás, o norte-americano) favorece, em geral, essa diferenciação dos perfis. Pelo contrário, as nossas universidades ganham a palma a todas as outras na clonagem de diplomados. Professor universitário